Uma Releitura Sistêmica de “O Meu Guri”:

entre o ato infracional e o crime

Marília Alves de Carvalho e Silva[1]

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento / Não era o momento de ele rebentar / Já foi nascendo com cara de fome / E eu não tinha nem nome pra lhe dar”. Com a sensibilidade que lhe é característica, Chico Buarque narra a história de tantos meninos e meninas na canção “O Meu Guri”. Escrita em 1981, permanece extremamente atual e escancara a imperiosidade de vertemos um olhar mais profundo sobre a infância e os atos infracionais, diminuindo a distância entre o “seu moço” e a comunidade.

Comentando sobre tal tema em debate que ocorreu no dia 09 de dezembro de 2021 e publicizou a parceria entre nosso Instituto e a Universidade Franciscana (UFN), o professor e defensor público Juliano Ruschel colaciona: “Tudo aquilo que nós não conseguimos resultados na área da Infância, na área da proteção, passa a cerca para o outro lado e começa a nos cobrar na seara do ato infracional”. Destacamos que o evento foi uma grande conversa que trouxe profissionais com atuações diversas no sistema de justiça para partilharem os saberes que efetivamente vivenciam no seu cotidiano.

Apesar de ter sido uma mesa virtual composta por diferentes profissionais, cujo objetivo era uma fala livre a partir da posição que ocupam no direito, as falas se conectaram e os assuntos foram se integrando com muita naturalidade. Prova disso o fato de a complexidade das questões envolvendo as infrações também ter tido lugar na exposição do Promotor Elkio Uehara, conforme se observa: “Será que é fácil para aqueles que vivem intensamente em uma comunidade fechada regras específicas, renunciarem a atuação dessa lei?”.

A sincronicidade é uma característica dos encontros sistêmicos, exsurgindo da própria fenomenologia. Nesta esteira, assim como é preciso ter “ouvidos de ver” para escutar o que não está sendo dito, necessária é também a humildade tão aventada no mesmo encontro, pois apenas assim nos comprometemos com nosso entorno e tomamos a consciência colocada pela professora Angelita Woltmann de que “a comunidade tem muito mais a nos ensinar do que nós a ela, na verdade”.

É com esta consciência que retomamos a música que inicia o texto para pensarmos sobre o guri além da “(…) manchete, retrato, com venda nos olhos, legenda e as iniciais”. Antes do destino trágico trazido em tais versos, já está anunciado desde as primeiras linhas que nasceu em um contexto de falta de planejamento, assolado pela exclusão de acesso a necessidades básicas, filho de uma mãe que o criou sozinha e fez o melhor que pode dentro de um contexto que foi “assim levando ele a me levar”.

Neste ponto se encontram a humildade, a responsabilidade, e o olhar ampliado que propomos: é preciso que nós, integrantes do sistema de justiça, estejamos dispostos primeiramente a ouvir o que esse guri e o nossos próprios guris e gurias tem a nos ensinar. A partir dessa autoconsciência somada a consciência do todo, é importante compreender quais as necessidades escondidas sob os problemas, e isso só é possível quando nos disponibilizamos a uma troca horizontal e não nos arrogamos na posição de “seu moço”.

Sobre a relação entre microssistemas e macrossistemas, trazemos novamente os versos de Chico e as palavras do Uehara: “Chega suado e veloz do batente / E traz sempre um presente pra me encabular / Tanta corrente de ouro, seu moço / Que haja pescoço pra enfiar”. A clara alusão aos furtos ou roubos nos sensibilizam diante do que muitos meninos e meninas provavelmente sentem diante de tanta desigualdade, e, mais do que isso, quando percebem que há outras pessoas que conseguem estas “correntes de ouro” de formas ilícitas. Contudo, olhar apenas para o ilícito é enxergar apenas uma parte.

Nesta esteira, cirúrgico é o questionamento do promotor quando nos convida a pensar se seria fácil renunciar a atuação de uma determinada “lei” quando se vive dentro dela. Frisamos desde logo que não estamos defendendo qualquer abolicionismo, o que seria até temerário nestas curtas linhas. Nossa proposta é incitar a pensar na construção de uma justiça coletiva e abrangente, que seja capaz de olhar para o micro e enxergar como os sistemas familiar, social e jurídico se interrelacionam entre si no macro.

Evidenciando que a dimensão de uma ausência cresce quando não é visibilizada, a fala de Juliano Ruschel demonstra como isso ocorre na prática: ao mencionar que a falta de um resultado na área da Infância pode retornar no âmbito do ato infracional, o defensor traz sua percepção fundamentada da realidade para expor que a carência de suporte para as crianças pode ter reflexos futuros que se materializem em atos infracionais. Nesse mesmo sentido, Eunice Schlieck relembra a lição sistêmica de que até ficar muito tempo com uma fralda suja pode gerar no bebê um registro de abandono.

Em nossa interpretação foi exatamente o que aconteceu ao guri da música, uma vez que os versos “Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais / Eu não entendo essa gente, seu moço” parecem indiciar que o mesmo foi preso ou até mesmo morto. A arte nos presenteia com a riqueza de permitir outras leituras, mas o próprio ritmo e cadência da canção trazem uma melancolia de alguém que passou a vida em um microssistema à margem, e submetido a um macrossistema ao qual nunca se sentiu pertencente.

Portanto, nosso enfoque não é a ausência de responsabilização, até porque a responsabilidade é um dos pilares do pensamento sistêmico. O que questionamos é a forma como nós podemos costurar juntos uma trama capaz de integrar políticas públicas macro e efetivo engajamento micro, de modo a possibilitar que o “chegar lá” tenha como fim um destino menos trágico que o da canção.

Bibliografia

LABORATÓRIO DE EXTENSÃO DO CURSO DE DIREITO – UFN. Dialogando sobre o Direito Sistêmico (…) em tempos de pandemia. Youtube, Transmitido ao vivo em 9 de dez. de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nb8EYxpMAGs. Acesso em: 12 dez. 2021.

BUARQUE, Chico. O Meu Guri. Letra. Disponível em:    https://www.letras.mus.br/chico-buarque/66513/. Acesso em: 01 dez. 2021.

HELLINGER, Bert. No Centro Sentimos Leveza: conferências e histórias. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

HERRERA FLORES, J. De habitaciones propias y otros espacios negados. Una teoría crítica de las opresiones patriarcales. Bilbao: Publicaciones de la Universidad de Deusto, 2005.

SCHLIECK, Eunice. Direito Sistêmico: uma abordagem transformativa do conflito. In: A Filosofia Jurídica Sistêmica: um olhar humanizado na justiça. Brasília: Ultima Ratio, 2020.

SILVA, Marília Alves de Carvalho e; PACHECO, Pedro Marques da Costa. A Transição Sistêmica e Colaborativa para as possibilidades Contemporâneas de Gerir Conflitos. In: A Filosofia Jurídica Sistêmica: Um Olhar Humanizado na Justiça. Brasília: Ultima Ratio, 2020.


[1] Mestre em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do grupo de Direito e Cinema vinculado à mesma instituição. Mediadora judicial em formação. Atuou como assistente de ensino na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Advogada e Professora entusiasta da transdisciplinaridade. Presidente da Comissão Especial de Estudos sobre Direito Sistêmico da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio de Janeiro (OAB/RJ). Facilitadora na Faleck e Associados. Coordenadora Científica do Instituto Brasileiro de Direito Sistêmico (IBDSist).

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